Guaraciara Gonçalves escreveu este artigo em 2015 em seu blog Preta Materna, agora fechado para convidados. Ela toca em questões delicadas sobre racismo e maternidade de forma certeira e tirando muita gente da zona de conforto. Trouxemos aqui sua crítica à Criação com Apego da forma como é proposta sem problematizações de gênero, raça e classe – “não discutimos os privilégios daquelas que podem partilhar dessa forma de criação e os transformamos em mérito“. Em uma sociedade tão desigual, esse discurso acaba por culpabilizar a mulher que não segue seus preceitos. Crítica fundamental, que marcou a blogosfera materna e que ainda é extremamente necessária. Segue o link original da PARTE I.
OS USOS E ABUSOS DA CRIAÇÃO COM APEGO
PARTE I
Uma coisa que me incomoda demais na blogosfera materna é a poluição que ela sofre do discurso da “criação com apego”. Digo na blogosfera materna porque na vida real esse discurso ainda não é tão presente, caso contrário, as mães sofreriam infinitamente mais de culpa do que já sofrem e seriam mais expostas a competitividade do que já são. Também digo “poluição” porque vejo a criação com apego como uma instituição/uma escola de pensamento sobre criação de filhos que tem as práticas que difunde sempre como pano de fundo nas diferentes polêmicas que surgem no meio materno, atrapalhando e tornando superficial o tratamento de questões que deveriam ser encaradas com mais profundidade, além de invisibilizar outras tantas questões importantes já que não fazem parte do pacote de tarefas a serem desempenhadas pelas mães.
Quando eu fiquei grávida eu não havia ouvido falar em criação com apego. Naquela época eu estava muito preocupada com o momento do nascimento da minha filha e portanto o pouco tempo que tinha para pesquisar eu usava para saber mais sobre parto. É interessante eu usar aqui o termo “pesquisar”, pois se trata disso mesmo. As informações sobre parto humanizado, como sabemos, não são disponíveis, uma vez que não é de interesse dos meios de comunicação de massa disseminar esse assunto e sim imagens de partos normais violentos e cesarianas “bem sucedidas”, já que são financiados pela saúde privada e o lobby do poder médico come solto. No sistema de saúde pública também não somos informadas sobre parto durante o pré-natal e muito menos preparadas para esse momento. Na rede privada então, não vou nem comentar, essa não vai mudar nunca, e o movimento de humanização ainda é direcionado à classe média. Nesse sentido, para aquelas que possuem capital cultural, ou seja, escolarização alta, fazem parte de grupos sociais que tem o privilégio do acesso a informação qualificada, e não só isso, tem poder para utilizar tais informações a seu favor, o que resta é pesquisar, para as demais mortais o que resta é a violência obstétrica.
Dessa forma o termo “criação com apego” apareceu para mim lá por volta do 4º mês da minha filha, quando eu comecei a frequentar a blogosfera materna em busca de informações sobre introdução alimentar de sólidos. Inicialmente, eu achei interessante por causa da discussão de uma educação sem violência, uma pauta seríssima! Achei que poderia ser um movimento legal de discussão sobre os direitos de TODAS as crianças e a construção de uma cultura de criação não violenta, mas logo vi que embora tenha esse gancho essa perspectiva acaba se perdendo em função da ditação de regras, da abordagem liberal e vazia de conteúdo político, da meritocracia que estabelece que para criar com apego “basta querer” ou é “só escolher”.
Em pouco tempo comecei a ficar desconfiada e incomodada, principalmente ao ver mulheres se digladiando pela internet a fora para provar quem é “mais mãe” e quem é “menas mãe”. Esses dois termos são interessantes para pensarmos o quanto essa perspectiva de criação tem colocado as mulheres umas contra as outras e é preciso que se reflita profundamente sobre isso.
Quando pensei em escrever esse texto, foi no sentido de, quem sabe, iniciar um debate crítico sobre esse assunto. É preciso que no ~ meio materno ~ as questões sejam mais aprofundadas e problematizadas. Acho que essa falta de aprofundamento se deve ao caráter pseudocientífico que algumas colocações no meio materno possuem, entre elas o discurso da criação com apego. Assim, se o doutor, o cientista e o psicólogo falaram que tem que ser, então deve está certo, para que discutir?
Um exemplo dessa falta de aprofundamento, e que me incomoda demais, é a discussão entorno do fato da mulher ter que voltar para casa ou continuar trabalhando depois que o bebe nasce. Parece que é uma questão de sim ou não. Quem ama o filho e cria com apego vai ficar em casa. A que “escolher” trabalhar, claro, também ama, mas coitada, vai ser “menas mãe” né? Não vai amamentar em livre demanda, não vai ficar com o filho no sling o dia todo, não vai compartilhar cama, pois cansada, precisa dormir mais ou menos bem, provavelmente vai dar chupeta ou deixar o filho chupar dedo, afinal, o que se faz com a necessidade de sucção quando o peito não está perto? Vai dar mamadeira, leite artificial, comida em papinha (quem vai limpar a sujeira do BLW enquanto ela trabalha? Quem pode desperdiçar comida com o BLW?), colocar na creche, deixar a mãe ou a vizinha cuidar, etc. O que temos aqui nessa divisão quem não trabalha X quem trabalha? Duas situações com mulheres extremamente sobrecarregadas, mulheres sem apoio, falta de políticas de bem estar para mulheres e crianças, afinal, deveríamos está pensando sobre o que será dessas mulheres e dessas crianças daqui a 10, 15 ou 20 anos. Mas não, partilhamos de uma visão de criação que é liberal. É pautada no “basta a mulher querer” e esquecemos de todo o entorno, de todas as condições que deveriam ser postas em prática pela sociedade e pelo Estado para que essa mulher possa criar seus filhos com dignidade, não discutimos os privilégios daquelas que podem partilhar dessa forma de criação e os transformamos em mérito, esquecemos inclusive, de tratar do papel de uma figura chamada…pai. Isso para mim tem a ver com a cultura classe média do ~ meio materno ~ somada ao discurso da criação com apego, já que para ambos os problemas se resolvem ao nível da vontade individual, do jeitinho e do mérito da mulher, e se ela falhar ela não se esforçou suficiente, ela é “menas mãe”.
Sempre que eu critico a sobrecarga imposta sobre a mulher, mesmo se tratando de mulheres privilegiadas, alguém vem e diz que a criação com apego é voltada para a família. Isso não é verdade e é um argumento frágil e falso.
Frágil, porque a maior parte dos princípios relacionam-se a mulher, basta você contar quantas vezes aparece a palavra mãe e quantas vezes aparece a palavra pai quando alguém (algum cientista/especialista) fala sobre a criação com apego. Dia desses li uma entrevista de um renomado pediatra que escreveu um livro sobre “terceirização da criança”. Ele começa falando da importância da família, da mãe e do pai, mas isso só no primeiro parágrafo, no restante da entrevista só se fala em …mãe. Isso é sintomático não?
O argumento é falso, pois não reconhece que vivemos em uma cultura machista e não problematiza isso. A mulher é culturalmente condicionada para se sentir responsável pela criação e para dar “amor” ao filho, afinal o “amor de mãe” é bem anterior ao discurso da criação com apego, não é mesmo? Não precisamos dessa “teoria” para sabermos disso, mas quanto ao pai? Quando teremos um movimento para que o pai seja pai? E mais, para os avós serem avós, os vizinhos serem vizinhos, as escolas serem escolas, os professores serem professores, o poder público, ser poder público, etc. Até quando só a mãe vai ser responsável por todos os problemas da sociedade? Sim, criar filhos é construir uma sociedade, ou não é?
Não temos que nos sentir culpadas ou achar que vamos ser apedrejadas pelos que defendem essa ou aquela forma de criar filhos. O que no meu ponto de vista precisamos é discutir com seriedade a criação das crianças, os direitos que possuem à saúde, educação, cultura, esporte, a construção de uma cultura de não violência que saia do nível da psicologização, do individualismo, e seja mais abrangente, que trate de temas sociais como racismo, sexismo, homofobia, desigualdade social, etc, etc. Temos uma agenda grande, precisamos aprofundar esses assuntos. Em outras palavras, quero dizer que a pauta da criação com apego não me interessa. Ela não é a pauta das mulheres negras. Já dormimos com nossos filhos e os carregamos há milênios e isso não por modismo, mas por necessidade. Já ensinamos nossos filhos a dividir, a respeitar seus irmãos, a respeitar os mais velhos. Não precisamos de criação com apego quando temos UBUNTU.
Somos mães carinhosas, parimos, amamentamos. Aliás amamentação e mulher negra é uma história a parte. Cuidamos dos nossos filhos, dos filhos das nossas irmãs, amigas, vizinhas e… dos filhos da classe média. Porém essa ditação de regras, a apropriação cultural, a difusão de práticas liberais, o machismo, a heteronormatividade, o determinismo científico, a deslegitimação de famílias adotantes, etc. , que estão subjacentes no discurso da criação com apego me incomodam e interferem na minha vida.
Para quem é adepto da criação com apego é preciso lembrar que não estamos nos Estados Unidos (nem sei se é exemplo de país com políticas de bem estar, tenho dúvidas) ou na Europa. Temos que batalhar por tanta coisa e eu fico muito surpresa quando vejo mulheres com tempo para acessar a internet e escrever, mulheres com tempo para pesquisar, mulheres com uma escolarização alta, enfim, mulheres com uma série de privilégios que poderiam ser postos a disposição daquelas que não tem, e que poderiam estar utilizando toda essa energia para lutar por melhores condições de vida para TODAS as crianças, gastando horas e horas de suas vidas discutindo se dormem ou não com o filho, se dão peito depois dos dois anos ou não, se dão comida de papinha ou não, etc. Não incluo aqui a amamentação exclusiva até os seis meses, nem o parto natural, porque não se tratam de “estilos de vida” como se mostra a criação com apego e outras práticas que se aproximam dela, e sim, questões de saúde com muitas evidências e recomendações da OMS.
Bom, para o texto não ficar muito confuso vou pontuar o que penso sobre alguns aspectos da criação com apego:
Monopolização do discurso sobre o cuidado
Uma das primeiras impressões que tive quando li textos sobre a criação com apego, foi a de se tratar de uma associação, de um modo geral formada por psicólogos e pediatras, que pretende difundir práticas sobre um cuidado respeitoso. Pelo que entendi Attachment Parenting International que é traduzida como criação com apego, é uma espécie de ONG criada nos anos 1990, inspirada nas propostas do pediatra William Sears, quer dizer, é uma instituição e como toda instituição ela deve instituir, ou seja, criar práticas, padrões e regras para a sociedade, criar uma normalização. Nesse sentido, o que eu vejo como criação com apego não é somente uma forma de criar filhos e sim uma instituição que pretende definir sei lá porque interesses como as pessoas no mundo devem criar seus filhos e como devem ser essas crianças no futuro. Isso precisa ser dito, criação com apego não é movimento social, é preciso que as pessoas saibam que quando dizem fazer criação com apego não estão praticando apenas um modo de criar filhos, estão também aderindo a uma instituição, a uma marca, uma escola de pensamento, que a meu ver quer monopolizar as práticas de cuidado, quer definir como as mulheres no mundo devem cuidar de seus filhos. Estão projetando pessoas, como o tal Dr. Sears, por exemplo, e vendendo produtos (muitos livros, palestras, Kits de alimentação etc.). Talvez por isso a questão das “regras” apareça tanto na fala das mães que se sentem oprimidas pela criação com apego, porque uma instituição precisa padronizar para poder se estabelecer.Eu, sinceramente, não vou ser partidária de algo que eu nem sei quais são os interesses e não faço ideia de quem sejam as pessoas envolvidas, por mais que a ideia seja bacaninha. Também não concordo com um grupo que pensa que suas regras valem para toda humanidade.
Vejo que por aqui a criação com apego tem sido difundida como o único modo de se criar uma criança de forma não violenta. Quando você diz que não é partidária da criação com apego parece que você está dizendo que maltrata, espanca, xinga, põe de castigo e humilha seu filho.Que você é “menas mãe”. Que você é uma pessoa ignorante e não sabe o que há de mais atual em termos de criação de filhos. Essa monopolização é uma das principais razões para a disputa entre as mães. Daí eu fico pensando: Quem tem o monopólio sobre o que é melhor para nossos filhos? Quem dita isso? Como e quando conversamos sobre isso e quando decidiram por mim? Por que decidimos aderir a essa instituição? Não temos exemplos na nossa sociedade de formas afetuosas de criação e precisamos buscar uma ONG dos Estados Unidos? Agora vou ter que saber inglês para poder ser uma boa mãe, já que tudo que a criação com apego produz é em inglês? Quem determina como devemos agir com nossos filhos? O Dr. Sears tem legitimidade para isso? Quem é ele? Eu devo seguir orientações de um homem branco de um país do Norte sobre como ser mãe? Por que devemos seguir orientações de uma instituição que não é brasileira e se organizou sobre uma realidade que não é a nossa? Onde anda nossa criatividade para resolvermos os impasses que temos na criação de nossos filhos?
É importante que as pessoas saibam que quando se trata de psicologia do desenvolvimento existem diferentes teorias. Existem argumentos e contra-argumentos. Por exemplo, pode-se argumentar que ficar com uma criança 24 horas por dia pode fazer dela um ser mais feliz no futuro ou fazer dela um ser dependente. Estamos tratando de seres humanos, de algo que não é exato.
A criação com apego é apenas UM RECORTE dentro de algo maior que é a TEORIA DO APEGO, a qual foi desenvolvida inicialmente pelos estudos de John Bowlby e Mary Ainsworth, em um contexto no qual as mulheres brancas de classe média reivindicavam sair de casa para trabalhar (coincidência?), e atualmente tal teoria tem zilhões de apropriações por psicólogos de diferentes correntes e visões políticas.
A teoria do apego é uma das várias teorias dentro de algo maior ainda que é a psicologia do desenvolvimento. Então entre Freud e Piaget, entre Vigotsky, Skinner e Bowlby, tem muita coisa no meio, tem muita corrente política e ideológica também. O conhecimento sobre o ser humano e seu desenvolvimento não pode ser monopólio de um grupo. Você pode se apropriar de diferentes teorias do desenvolvimento humano para se relacionar com seus filhos. Por que, então, esse pensamento único?
Criação com apego X parto ativo
Meu parto foi natural. É o melhor para a saúde da mulher e do bebê, isso é fato. Eu confio na capacidade de parir das mulheres e na capacidade de nascer dos bebes, é fisiológico. Ideologicamente falando, defendo o parto ativo, acredito que nele a mulher tem controle sobre o próprio corpo, o que é um direito dela. No nosso contexto, isso faz com que ela e seu bebe sejam respeitados, não sofram violência obstétrica. Aprendi ao longo da minha gravidez que a mulher sabe parir, que a intervenção médica deve acontecer somente em caso de necessidade, que a medicalização da gravidez é excessiva. Depois do nascimento da minha filha, também passei a encarar a medicalização do desenvolvimento dela como algo desnecessário. O acompanhamento dela é feito por enfermeira no posto de saúde e até aqui estou satisfeita. Só que eu vejo uma contradição dentro do ativismo, uma vez que o discurso da humanização do parto e o da criação com apego, muitas vezes são faces da mesma moeda, muitas vezes partem das mesmas pessoas e lugares e se confundem. Eu acho contraditório demais, mas entendo a confusão já que a criação com a pego, no seu principio primeiro defendeo parto natural. A visão ideológica de ambos os ativismos também é parecida. É liberal e meritocrática, pautada no “a mulher tem que correr atrás”.
Pois bem, enquanto para o parto humanizado a mulher é senhora do próprio corpo, protagonista que sabe parir, na criação com apego ela já não tem mais a mesma capacidade para amar seu filho e precisa usar as muletas chamadas de…oito princípios (regras). Deixa de ser a protagonista e passa novamente a depender dos especialistas que vão dizer qual é a melhor forma de desenvolver o amor entre ela e seu filho.
Novamente os cientistas e os médicos são convocados. Novamente ela perde o controle da situação. Novamente ela volta para a condição de mulher imposta pela sociedade. Se torna mãezinha, mas dessa vez de forma sofisticada, embasada em pesquisas neurocientíficas. Surge até um novo termo, a MATERNAGEM. Essa abordagem dificulta a percepção de algumas armadilhas, como no caso da mulher que está sem condições financeiras e sem condições de estudar e que para aderir ao “movimento” e se tornar uma boa mãe, deixa de pensar no próprio futuro ao “decidir” que não vai mais trabalhar.
Neurocientistas, psicólogos, pediatras, etc. Todos vão dizer para a mãezinha o que ela deve fazer para conseguir algo tão difícil… amar seu próprio filho e ser amada por ele… o pior é que em geral são homens dizendo o que as mulheres devem fazer para cuidar de seus filhos. A mulher que havia se tornado protagonista, “empoderada”, que se contrapôs ao poder médico, que moveu céu, terra e mar para parir, retorna a condição de dependente do conhecimento de homens sobre algo que é tão tradicional quanto parir, e mergulha em um mundo de culpas quando não consegue seguir as regras colocadas pela instituição criação com apego.
Uma outra contradição do ativismo, diz respeito a análise das evidencias científicas. Nas minhas primeiras leituras sobre parto humanizado sempre me deparava com a expressão “medicina baseada em evidências”. Por que é que o incentivo a práticas baseadas em evidências não continua com relação a criação com apego? Vejo um desfile de estudos muito iniciais apresentados com status de verdade científica, fazendo com que as mulheres se sintam culpadas ao não conseguirem aderir a determinadas regras.
Cientificismo e psicologização
Eu acredito que o cientificismo e a psicologização são centrais no sistema de culpas construído pela criação com apego. O argumento de que “o que você fizer com seu filho vai impactar a vida dele para sempre” é muito forte e é muito presente em todos os textos sobre o tema encontrados na internet e no próprio site da associação criação com apego. Também falam muito que ” Os resultados do apego seguro acompanham as crianças também na vida adulta”.
Nas palavras da autora do blog Cientista que virou mãe, o qual é referência sobre criação com apego no Brasil: “O termo attachment parenting foi utilizado pela primeira vez por um médico, William Sears, com base na teoria do apego, que leva em consideração o fato de que a criança, durante sua infância, tende a criar um vínculo emocional bastante forte com seus cuidadores que gera consequências durante toda sua vida.” (o negrito é da própria autora). Você pode ler esses argumentos aqui e aqui.
O cientificismo tem como desdobramento a psicologização, a qual é uma entrada para a medicalização. Vejo aqui uma outra contradição do ativismo, o qual questiona a medicalização, mas não questiona a psicologização promovida pela criação com apego. Argumentos do tipo “o que você fizer vai impactar a vida do seu filho para sempre”, são extremamente deterministas e já traçam uma personalidade, se é que isso existe, de forma muito precoce para um ser humano que está em constante construção. Eu sou paulofreireana e acredito que somos totalmente inacabados. Estamos constantemente sendo construídos e reconstruídos. Não existe essa de “para o resto da vida”. Acho isso determinismo da pior espécie. Como é que os dois primeiros anos de vida podem determinar o que um ser humano vai ser para sempre? Vocês realmente acreditam nisso? Vocês criam seus filhos com amor por causa disso? Vamos amar nossos filhos porque eles são seres humanos e ponto!
Quando as mulheres reclamam que se sentem cansadas e oprimidas por terem que seguir as regras da criação com apego, logo aparece alguém para dizer que ela não precisa fazer tudo, que é só escolher o que mais se adéqua a sua família, mas diante desse determinismo todo vocês acham que ela vai ficar segura em abrir mão de alguma das regras? Você acha que ela não vai tentar até a exaustão por em prática todos os “princípios”. E você acha que ela não vai começar a julgar as que não conseguiram, já que é uma questão de “basta se esforçar”?
Então diante disso, há regras sim. Vamos falar a verdade. Todo mundo se esforçando ao máximo para manter o filho no sling o dia inteiro. Dar peito em livre demanda para sempre. Dormir em cama compartilhada com a coluna se acabando. Garantir o parto humanizado idealizado a qualquer custo. Se falhar em alguma dessas estratégias, vai ter pesadelos com o futuro dos filhos. Vai pensar que os filhos serão drogados, marginais, não gostarão dos pais nem de estudar, serão adolescentes rebeldes, não seguirão a vidinha medíocre classe média de crescer, estudar, fazer faculdade, comprar carro, comprar casa, ser heterossexual, casar com pessoa do mesmo nível sócio-econômico e racial, ter filhos, etc. Digo isso porque não vejo nos fóruns de criação com apego e “maternagem consciente” as pessoas discutindo o que querem realmente do futuro, da sociedade, das relações sociais. Vejo que o que querem do futuro é a perpetuação da mesma vida classe média, da mesma sociedade, só que agora com “mais amor por favor”.
NÃO ADIANTA DIZER AGORA QUE NÃO HÁ REGRAS SE VOCÊ JÁ DISSE PARA AS MULHERES, BASEADO EM ARGUMENTOS CIENTÍFICOS, QUE O QUE ELAS FIZEREM COM OS FILHOS VAI IMPACTAR A VIDA DELES PARA SEMPRE. A CULTURA DA CULPA JÁ FOI INSTALADA AÍ!
Esses argumentos deterministas, são perigosos e não possuem evidencias científicas. Como mulher negra moradora da favela, penso que essa visão serve para reforçar os estigmas que nós negros carregamos de “perigosos”, de “suspeitos”, de “potencialmente criminosos”. Tais estigmas são construídos principalmente sobre as crianças negras e possuem essa base pseudocientífica, para a qual a violência sofrida por essa criança em decorrência da ausência da mãe que trabalhava fora, da “família desestruturada” (que é sinônimo de “mãe solteira” – um nome ruim para outro pior ainda) e principalmente a pobreza, marcaram sua “personalidade” para sempre, por isso ela é assim, por isso tem tendencias ao crime a a autodestruição. Disfarçou-se a explicação baseada na raça, na genética, em uma baseada na pobreza e na ausência da mãe. Essa reprodução de uma visão determinista, que em ultima análise reforça a criminalização da pobreza, incentivada pela criação com apego também é um dos motivos para eu não compactuar com ela. E faz dela totalmente elitista uma vez que as mulheres pobres vão continuar trabalhando, vão continuar longe de seus filhos, e esses continuarão, dentro dessa visão, sofrendo os supostos impactos dessa ausência, e sendo vistos por isso, com preconceito, num ciclo sem fim.
Dando suporte a esses argumentos deterministas sempre vem discussões sobre as sinapses cerebrais, a liberação de oxitocina e o equilíbrio psicológico das crianças.
Os adeptos da criação com apego dizem que baseiam-se em estudos neurocientíficos que comprovam tais afirmações, porém esses estudos são muito controversos. É comum encontrar diferentes contra-argumentos no meio da neurociência uma vez que o cérebro humano é um verdadeiro mistério. Além disso como é possível afirmar que uma sinapse cerebral é sinônimo de amor? Uma sinapse cerebral é a transmissão de impulsos nervosos de uma célula para outra, basicamente. Amor tem a ver com as relações sociais, com o cuidado, e não só com o biológico. Aliás, o amor tem uma historicidade, nem sempre foi como é hoje. Ele começa no corpo, mas passa pelo crivo da cultura e da sociedade.
Um outro problema é o exagero com relação aos efeitos da oxitocina. Os estudos sobre esse hormônio como hormônio do amor são extremamente incipientes. O que é evidência científica sobre a oxitocina é o seu papel com relação ao trabalho de parto e decida do leite materno. Em relação ao amor, nada é comprovado, os estudos estão engatinhando. Você pode ler sobre essas questões que envolvem cérebro e oxitocina nesse texto Neurociências na berlinda e na entrevista do neurocientista Raymmond Tallis para quem Neurociência para tudo é bobagem. Esses textos são só para apresentar contra-argumentos e mostrar que os argumentos da criação com apego não são evidências científicas, até porque essa instituição tem cerca de 20 anos, então não há estudos longitudinais suficientes para dizer que isso ou aquilo vai impactar alguém para o resto da vida. Mesmo se tivessem esses estudos, poderíamos questionar a capacidade de transculturalidade deles, ou seja, de serem aplicados em realidades culturais e sociais diferentes. Então por que esse discurso ganhou status de verdade científica?
Eu ainda queria escrever sobre os demais aspectos que pontuei lá no início como incômodos que eu tenho com a criação com apego, porém o texto ficaria bem maior do que ele já está e isso para um blog é massante. Desse jeito resolvi escrever por partes e logo logo escreverei a parte II na qual tratarei da apropriação cultural, do liberalismo, heteronormatividade e da invisibilização das famílias adotantes e da falta de preocupação com os direitos reprodutivos.
Escrito por Guaraciara Gonçalves – Preta Materna, 2015.
Texto fantástico!!! Parabéns para a autora Guaraciara Gonçalves