Ano passado (2021) fiquei com muita raiva ao olhar as redes sociais de um nobre deputado que se diz da minha cidade (mas não é), quando me deparei com uma bela foto. Um garotinho de aproximadamente sete, oito anos, sentado do lado do pai, ambos vestidos de trabalhadores rurais. Talvez este seja o motivo da saudade, lembrança boa e, se trabalhar ao lado do velho pai. Entretanto o deputado usava a foto saudosista aparentemente de forma inocente em uma pesquisa de opinião sobre um projeto de sua autoria para permitir que adolescentes de 14 anos possam acompanhar os pais ao trabalho e lá permanecer, ou seja, trabalhar sob supervisão dos próprios pais. O texto ganha corpo e fica até bonito, pois ativa o gatilho da saudade e do orgulho dos pais trabalhadores na mente do leitor.
Filhos que viram os pais trabalharem pelo seu sustento sentem-se orgulhosos independentemente da profissão e reitero, esses filhos têm toda razão por se orgulharem dos pais trabalhadores pois são dignos desse sentimento. No entanto o deputado não tinha a inocente intenção de exaltar o esforço dos pais, mas sim de criticar a Lei do Aprendiz, nº 10.097/2000, ampliada pelo Decreto Federal nº 5.598/2005, que determina que todas as empresas de médio e grande porte contratem um número de aprendizes equivalente a um mínimo de 5% e um máximo de 15% do seu quadro de funcionários, cujas funções demandem formação profissional. Essa lei já permite a contratação de adolescentes, mas impõe diversos fatores de proteção ao adolescente e determina principalmente que seja estudante e trabalhe em algo que agregue conhecimento. Assim é possível quebrar o ciclo da miséria, possibilitando que aquele adolescente cresça com experiência em uma profissão.
O deputado acha que isso é demais, que a Lei do Aprendiz faz com que empregadores gastem muito e seria melhor que adolescentes trabalhassem com os pais. Quero que entendam que o grande problema é que as famílias em situação de vulnerabilidade social, mais precisamente as que enfrentam a fome, são as que precisam desse complemento de renda. Não estamos tratando do fato de um professor ter a ajuda do filho para criar conteúdo digital para seus alunos, nem de um médico levar um adolescente para digitar as queixas de seus pacientes em um sistema integrado. Os filhos da classe média estudam, fazem cursos, utilizam a lei do aprendiz que complementa a renda e confere profissão de nível técnico. Os filhos dos ricos estudam nas melhores escolas, viajam, conhecem outros países e culturas, enquanto quem precisa complementar a renda vai trabalhar com os pais onde mesmo? No sinal, vendendo pano de prato? Nas carvoarias? No estacionamento, lavando vidros de carros? Ou na casa da patroa da mãe lustrando a prata? A imagem de pais que levam filhos para o trabalho é bem diferente da imagem bonita.
Não se trata de um filho aprendendo profissão ou dando uma ajudinha. Se trata de criança fora da escola, trabalhando por horas exaustivas nos trabalhos mais degradantes possíveis para receber quase nada em troca.
Se trata de chegar na idade adulta e não conseguir mudar de profissão por não ter estudado e nem feito outra coisa e ter que continuar vivendo com dificuldades, com um corpo fraco e dependendo de levar o filho também para a carvoaria e o filho de seu filho e assim por diante. Porque a escravidão contemporânea na idade adulta é precedida por uma infância roubada e marcada pelo analfabetismo e trabalho duro.
O Brasil rural, aquele que está além do sítio do seu amigo, tem raízes profundas na escravidão. Ainda não superou. Muitos dos grandes latifundiários renomados apostam no trabalho infantil e na escravização de adultos para garantirem o lucro, e com o golpe de 2016 e as políticas de austeridade impostas por Temer seguidas do desprezo de Bolsonaro pela vida têm diminuído consideravelmente as verbas para o combate ao trabalho escravo, além de aprovarem leis que facilitam a prática e dificultam as fiscalizações e punições.
No entanto, não é apenas no campo que isso acontece. O Brasil está lotado de fábricas de costura com mulheres bolivianas trazidas ao Brasil com promessa de melhoria de vida, que ao chegarem encontram apenas dor, sofrimento, jornada de dezesseis ou mais horas de serviço com criança no colo e tendo que dormir ou comer no mesmo local em que trabalham. Quando questionadas, respondem que estão em dívida, pois pagam alojamento, comida, material de trabalho e nunca têm saldo para receber.
Talvez você pense que isso não é seu problema. Mas esse é um problema de todos nós. O mercado da escravidão contemporânea se apropria de corpos, de vidas e não se importa de tirara a identidade, os sonhos, os ganhos, a vida e a dignidade.
Deputados que representam a elite defendem isso e fazem de forma tão profissional através da mídia, de escritórios de publicidade e fazem parecer uma coisa simples e bonita. É comum ver pessoas pobres que foram vítimas de todo o tipo de abuso e que doentes e sem uma velhice digna dizem que todo trabalho é digno, que ninguém morre de trabalhar e que criança pode trabalhar sim. Esse discurso é pensado pelos marketeiros e reproduzido em todos os meios possíveis. E por que fazem isso? Porque o mercado da escravidão movimenta mais de 5 bilhões por ano.
Vale lembrar que todo trabalho é digno sim, mas nem todo(a) trabalhador(a) tem sua dignidade preservada.
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