Olá caríssimos leitores e leitoras. Já faz um bom tempo que não vos escrevo, e confesso que ao dedilhar meus sentimentos e visão de mundo sobre esse teclado, sinto como se olhasse em seus olhos como bons amigos conversando e tomando uma xícara de chá. Dada a essa saudade, me reservo o direito de usar a licença poética aqui e escrever em primeira pessoa para que vocês também possam sentir o meu afago.
Eu não contei para vocês o que andei fazendo? Foi uma experiência incrível! Na verdade acho que lhes privei de muitas coisas sobre mim. Talvez vocês não saibam, mas sou técnica de enfermagem, e andei exercendo bem longe da minha terra sul mineira fresquinha e montanhosa. Fui para Roraima como voluntária na Emergência Yanomami.
Mas de que emergência estamos falando? A invasão dos territórios Yanomami é um problema estrutural, e se acentuou de forma grave nos últimos quatro anos, incentivada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Em abril de 1998, o então deputado Bolsonaro elogiou a cavalaria norte-americana pelo extermínio dos indígenas daquele país. Em suas palavras: “Até vale uma observação neste momento: realmente a cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a Cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema no país”.
O discurso violento contra os povos indígenas nunca mudou. Inclusive durante a campanha presidencial, em 2018, disse que se vencesse as eleições, os indígenas não teriam um centímetro de terra demarcada. Ainda assim, o povo votou. Concordou com genocídio e Bolsonaro não só cumpriu a promessa de não demarcar novos territórios, como ainda incentivou a invasão de garimpeiros aos territórios já demarcados.
O cenário passou a ser de fome, morte de rios, animais, pessoas. Crianças tentando sugar uma gota de leite nos seios de suas mães enquanto desfaleciam. Garimpeiros colocando fogo nas aldeias, abusando de meninas pela força ou em troca de um pedaço de pão. Equipes de saúde expulsas dos territórios, pistas fechadas e ONGs ligadas ao então governo levando assistência aos garimpeiros com os recursos que deveriam ser destinados aos cerca de 30 mil indígenas do território.
Vinte e um pedidos de socorro foram ignorados propositalmente. Bolsonaro decidiu ignorar e tudo veio à tona quando o presidente Lula assumiu seu posto e levantou o tapete que escondia os mortos da Amazônia. Em janeiro decretou emergência. Começou a retirada dos garimpos e a retomada do território. Nesse momento as equipes de saúde são convocadas e eu me voluntariei.
Atuei na Casai-Y (Casa de saúde indígena Yanomami). É um lugar onde há várias casas (malocas) de alvenaria ou madeira para que os indígenas possam ficar em segurança enquanto se tratam, visitam parentes no hospital ou se recuperam da desnutrição. Dentro da Casai há 2 postos de saúde, uma enfermaria especial, foi montado um hospital de campanha e eles recebem seis refeições diárias. É incentivado que pratiquem suas artes, confeccionem artesanato e convivam entre si.
No entanto, os que ficam na Casai demonstram muita insegurança quanto ao futuro. Querem voltar para a casa para fazer a roça, mulheres se preocupam com os filhos que ficaram no território sem garantia de alguém se ocupar de sua alimentação, e assim, a falta de atividades ocupacionais, incertezas, dificuldade de comunicação colaboram para o adoecimento mental e psicológico.
Outro tipo de adoecimento que é preocupante, é cultural. Começam a duvidar das ervas. Já dizem que na floresta não tem cura, não tem remédio. Que branco tem. E a cada dia em que desacreditam, morrem um pouco. Param de ensinar aos mais jovens e assim, o conhecimento histórico vai se perdendo.
O que mais pratiquei foi a auscuta e a escuta. A auscuta pulmonar através do estetoscópio e a escuta de histórias de vida através da humanidade. Aprendi um pouco da cultura, dos sonhos, dos medos, dos costumes. Cometi gafes falando em yanomai com pessoas da etnia Yekwana. Confundi Xirixana com Xiriana. Fui chamada de mãe por um jovem Sanumã. Descobri que era preciso Waitheri, coragem para deixar a vida daqueles meus amigos um pouco mais Totihi. Mas a coragem que cito não é a coragem de largar a nossa casa e ir para uma terra onde 4 em cada 5 exames constava positivo para malária. Para se propor a cuidar de pessoas que não falam seu idioma, para ficar sem banho porque o rio está contaminado. Falo da coragem de olhar o outro de igual para igual. De assumir que não existem eles e nós. Coragem para se colocar a serviço do outro e acima de tudo, coragem para encarar a honestidade que só o povo yanomami tem para assumir que tudo o que se fala é verdade, e portanto não trabalham com a palavra “mentira”.
O dia em que mais sofri foi quando passei de casa em casa avisando a 27 pessoas que no dia seguinte partiriam para o território bem cedinho. Foi uma festa. Assaram milho e eu fui convidada a cozinhar e a comer com eles porque fui porta-voz de boa notícia. No dia seguinte o avião não foi. Eles não queriam saber se era mau tempo, perigo, ou má vontade. Eles me chamaram para saber se agora a palavra de Ufulu (cabelo enrolado para cima, meu nome yanomami), se a palavra de Ufulu havia perdido o valor. Passamos o dia conversando sobre vôo, sobre nuvens, chuva… mas eu não queria dizer mais nada. Não queria dar nenhum recado que eu pessoalmente não pudesse garantir.
É, amados e amadas! É preciso coragem para que se aplique ao povo indígena o princípio de saúde que existe desde 1978. Que saúde não é só a ausência de doença, mas também um completo estado de bem estar físico, social e mental. E não adianta o governo despejar rios de dinheiro para solucionar o problema. Não adianta abrir um posto de saúde para cada 10 habitantes. Pois se o ambiente de cura for mais adoecedor que a própria doença, a cura não acontecerá.
Por Giza (Ufulu) Alexandre
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