JOÃO CARLOS E JOAQUIM

Era 23 de dezembro, dona Maria (apenas dona Maria. Não carece de sobrenome) deu um beijo em Joaquim. Explicou que iria trabalhar. Que era pra ele se comportar pois voltaria assim que possível. Se caso não voltasse até o natal, era pra rezar pro menino Jesus, mas sem colocar vela porque a vela é perigosa e pode queimar os barracos da região.

O menino a abraçou e falou que queria muito passar o natal com a mãe. A mãe então sorriu, o beijou e disse que seu coração ficaria com ele. Com vontade de chorar, mas já sem tempo, D. Maria se apressou em mostrar que na geladeira havia laranja, banana, rosca, leite e um molhinho de salsicha. O arroz também estava pronto. Era só colocar o molho e aquecer no forninho. E com o coração apertado, mas grata por ter um emprego partiu. E lá do condomínio luxuoso da patroa, visualizava em sua mente o filho brincando à sua espera.

Maria Clara Albuquerque Figueiredo Bragança e mais alguns sobrenomes comunicou que aquele natal seria muito especial. Dona Maria deveria começar com uma faxina mais intensa, pois as seis suítes estariam ocupadas. Era preciso lavar os cobertores, esfregar os azulejos, as janelas, e deixar toda a prataria e cristais brilhando, pois uma coisa que Maria Clara cheia de sobrenomes importantes sabia fazer, era receber bem. 

João Carlos andava meio deprimido. Estava cansado. Havia passado todo o ano estudando. Além das disciplinas escolares, havia o curso de inglês, espanhol, francês, programação, natação e o professor particular de matemática. Dona Maria além da limpeza, das roupas e da cozinha também coordenava os horários do jovem João Carlos, que assim como Joaquim estava com 13 anos. A diferença é que não havia ninguém na casa de dona Maria para olhar se Joaquim estava frequentando a escola ou fazendo a lição.  

Na noite do dia 24 tudo estava limpo, a mesa posta com cascata de camarões, luminárias, tudo seguindo as regras de etiqueta. Garçons já haviam chegado e dona Maria informou que iria para a casa cozinhar para o filho. Maria Clara revoltada disse que se D. Maria fizesse isso não precisava voltar, pois era muita ingratidão com quem lhe pagava todos os meses. Disse também que Joaquim já tinha 13 anos e que não seria bom para um garoto dessa idade ser mimado assim pela mãe. Ele deveria crescer independente. Concluiu o sermão mandando a empregada servir o prato do filho João Carlos. 

Dona Maria comemorou o natal com filho no dia 25 à tarde, pois ainda teve que limpar os resquícios da ceia e preparar o almoço. O momento com filho, embora demorado até chegar, foi muito bom. Comeram arroz com frango assado e tomaram refrigerante. No dia 26 a rotina recomeça.  

Passou ano novo, as férias, tudo volta ao normal. Dona Maria sem sobrenome sai às 4 da manhã, vai pra casa da Maria Clara. Prepara o café e a agenda de João Carlos. Controla refeições com todos os nutrientes conforme receita da nutricionista enquanto seu filho divide o que vai comer pra não faltar. Chega em casa à noite, quase nunca encontra Joaquim acordado. Beija o filho, faz sinal da cruz em sua testa e reza pra que nenhum mal o alcance. E assim a vida segue.  

Alguns anos depois D. Maria de pé ao lado da bela mesa onde os patrões jantavam (sim, ela servia o jantar, lavava a louça e só depois pegava dois ônibus para a casa) ouviu a conversa aquecida. João Carlos com 17 anos tal qual seu filho Joaquim, foi assaltado ao voltar do cursinho pré-vestibular. Alguns jovens o empurraram e levaram seu telefone celular. O pai começou a dizer que isso acontecia porque não existe lei neste país. “Tem que ter prisão perpétua pra esses desocupados. Direitos humanos para humanos direitos… Não importa a idade. Tem que ir pra cadeia porque já nasce ruim” – bradava o homem. 

Maria Clara acreditava que era falta de Deus. Que se os pais ensinassem a rezar nada disso aconteceria. A sogra de Maria Clara, uma senhora exuberante, cheia de plástica, alguma coisa e Bragança, disse que o problema é que esses jovens são criados sem supervisão. “Onde estava a mãe desse menino?” 

D. Maria sem sobrenome engoliu seco e se lembrou de que naquele exato momento não sabia onde seu filho estava, e que ao longo dos anos nunca soube. Torceu para que a resposta para aquela pergunta não fosse: A mãe desse menino está aqui servindo esta mesa. 

Autor: Giza Alexandre

Autor: Giza Alexandre

Filha de trabalhadores rurais, atualmente militante pela causa das mulheres negras e rurais, também atua contra o trabalho infantil, escravidão doméstica e escravidão no campo. Como escritora e roteirista já publicou livros, peças e ganhou o título de Diretora Executiva da Confederação Latino-americana de escritores, poetas e artistas do mundo. Produtora de conteúdo no canal no YouTube Giza Didática.

Postagens Relacionadas

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.